Fernando Pessoa

"Poemas de Álvaro de Campos"

I

Quando olho para mim não me percebo.

Tenho tanto a mania de sentir

Que me extravio às vezes ao sair

Das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo,

Pertencem ao meu modo de existir,

E eu nunca sei como hei de concluir

As sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca propriamente reparei

Se na verdade sinto o que sinto. Eu

Serei tal qual pareço em mim? Serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?

Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,

Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.

II

A praça da Figueira de manhã,

Quando o dia é de sol(como acontece

Sempre em Lisboa), nunca em mim esquece,

Embora seja uma memória vã.

Há tanta coisa mais interessante

Que aquele lugar lógico e plebeu,

Mas amo aquilo, mesmo aqui... Sei eu

Por que o amo? Não importa nada... Adiante!

Isto de sensações só vale a pena

Se a gente se não põe a olhar para elas.

Nenhuma delas em mim serena...

De resto, nada em mim é certo e está

De acordo comigo próprio. As horas belas

São as dos outros ou as que não há.

(III) Soneto já antigo

Olha, Daisy: quando eu morrer tu hás-de

dizer aos meus amigos aí de Londres,

embora não o sintas, que tu escondes

a grande dor da minha morte. Irás de

Londres p'ra Iorque, onde nasceste(dizes...

que eu nada que tu digas acredito),

contar àquele pobre rapazito

que me deu tantas horas tão felizes,

Embora não osaibas, que morri...

mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar,

nada se importará... Depois vai dar

a notícia a essa estranha Cecily

que acreditava que eu seria grande...

Raios partam a vida e quem lá ande!

OPIÁRIO

Ao Senhor Mário de Sá-Carneiro

É antes do ópio que a minh'alma é doente.

Sentir a vida convalesce e estiola

E eu vou buscar ao ópio que consola

Um Oriente ao oriente do Oriente.

Esta vida de bordo há-de matar-me.

São dias só de febre na cabeça

E, por mais que procure até que adoeça,

Já não encontro a mola pra adaptar-me.

Em paradoxo e incompetência astral

Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,

Onda onde o pundonor é uma descida

E os próprios gozos gânglios do meu mal.

É por um mecanismo de desastres,

Uma engrenagem com volantes falsos,

Que passo entre visões de cadafalsos

Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.

Vou cambaleando através do lavor

Duma vida-interior de renda e laca.

Tenho a impressão de ter em casa a faca

Com que foi degolado o Precursor.

Ando expiando um crime numa mala,

Que um avô meu cometeu por requinte.

Tenho os nervos na forca, vinte a vinte,

E caí no ópio como numa vala.

Ao toque adormecido da morfina

Perco-me em transparências latejantes

E numa noite cheia de brilhantes

Ergue-se a lua como a minha Sina.

Eu, que fui sempre um mau estudante, agora

Não faço mais que ver o navio ir

Pelo canal de Suez a conduzir

A minha vida, cânfora na aurora.

Perdi os dias que já aproveitara.

Trabalhei para ter só o cansaço

Que é hoje em mim uma espécie de braço

Que ao meu pescoço me sufoca e ampara.

E fui criança como toda a gente.

Nasci numa província portuguesa

E tenho conhecido gente inglesa

Que diz que eu sei inglês perfeitamente.

Gostava de ter poemas e novelas

Publicados por Plon e no Mercure,

Mas é impossível que esta vida dure.

Se nesta viagem nem houve procelas!

A vida a bordo é uma coisa triste,

Embora a gente se divirta às vezes.

Falo com alemães, suecos e ingleses

E a minha mágoa de viver persiste.

Eu acho que não vale a pena ter

Ido ao Oriente e visto a Índia e a China.

A terra é semelhante e pequenina

E há só uma maneira de viver.

Por isso eu tomo ópio. É um remédio.

Sou um convalescente do Momento.

Moro no rés-do-chão do pensamento

E ver passar a Vida faz-me tédio.

Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, enfim,

Muito a leste não fosse o oeste já!

Pra que fui visitar a Índia que há

Se não há Índia senão a alma em mim?

Sou desgraçado por meumorgadio.

Os ciganos roubaram minha Sorte.

Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte

Um lugar que me abrigue do meu frio.

Eu fingi que estudei engenharia.

Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.

Meu coração é uma avòzinha que anda

Pedindo esmola às portas da Alegria.

Não chegues a Port-Said, navio de ferro!

Volta à direita, nem eu sei para onde.

Passo os dias no smoking-room com o conde -

Um escroc francês, conde de fim de enterro.

Volto à Europa descontente, e em sortes

De vir a ser um poeta sonambólico.

Eu sou monárquico mas não católico

E gostava de ser as coisas fortes.

Gostava de ter crenças e dinheiro,

Ser vária gente insípida que vi.

Hoje, afinal, não sou senão, aqui,

Num navio qualquer um passageiro.

Não tenho personalidade alguma.

É mais notado que eu esse criado

De bordo que tem um belo modo alçado

De laird escocês há dias em jejum.

Não posso estar em parte alguma. A minha

Pátria é onde não estou. Sou doente e fraco.

O comissário de bordo é velhaco.

Viu-me co'a sueca... e o resto ele adivinha.

Um dia faço escândalo cá a bordo,

Só para dar que falar de mim aos mais.

Não posso com a vida, e acho fatais

As iras com que às vezes me debordo.

Levo o dia a fumar, a beber coisas,

Drogas americanas que entontecem,

E eu já tão bêbado sem nada! Dessem

Melhor cérebro aos meus nervos como rosas.

Escrevo estas linhas. Parece impossível

Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta!

O facto é que esta vida é uma quinta

Onde se aborrece uma alma sensível.

Os ingleses são feitos pra existir.

Não há gente como esta pra estar feita

Com a Tranquilidade. A gente deita

Um vintém e sai um deles a sorrir.

Pertenço a um género de portugueses

Que depois de estar a Índia descoberta

Ficaram sem trabalho. A morte é certa.

Tenho pensado nisto muitas vezes.

Leve o diabo a vida e a gente tê-la!

Nem leio o livro à minha cabeceira.

Enoja-me o Oriente. É uma esteira

Que a gente enrola e deixa de ser bela.

Caio no ópio por força. Lá querer

Que eu leve a limpo uma vida destas

Não se pode exigir. Almas honestas

Com horas pra dormir e pra comer,

Que um raio as parta! E isto afinal é inveja.

Porque estes nervos são a minha morte.

Não haver um navio que me transporte

Para onde eu nada queira que o não veja!

Ora! Eu cansava-me do mesmo modo.

Qu'ria outro ópio mais forte pra ir de ali

Para sonhos que dessem cabo de mim

E pregassem comigo nalgum lodo.

Febre! Se isto que tenho não é febre,

Não sei como é que se tem febre e sente.

O fato essencial é que estou doente.

Está corrida,amigos, esta lebre.

Veio a noite. Tocou já a primeira

Corneta, pra vestir para o jantar.

Vida social por cima! Isso! E marchar

Até que a gente saia pla coleira!

Porque isto acaba mal e há-de haver

(Olá!) sangue e um revólver lá prò fim

Deste desassossego que há em mim

E não há forma de se resolver.

E quem me olhar, há-de-me achar banal,

A mim e à minha vida... Ora! um rapaz...

O meu próprio monóculo me faz

Pertencer a um tipo universal.

Ah quanta alma viverá, que ande metida

Assim como eu na Linha, e como eu mística!

Quantos sob a casaca característica

Não terão como eu o horror à vida?

Se ao menos eu por fora fosse tão

Interessante como sou por dentro!

Vou no Maelstrom, cada vez mais prò centro.

Não fazer nada é a minha perdição.

Um inútil. Mas é tão justo sê-lo!

Pudesse a gente desprezar os outros

E, ainda que co'os cotovelos rotos,

Ser herói, doido, amaldiçoado ou belo!

Tenho vontade de levar as mãos

À boca e morder nelas fundo e a mal.

Era uma ocupação original

E distraía os outros, os tais sãos.

O absurdo, como uma flor da tal Índia

Que não vim encontrar na Índia, nasce

No meu cérebro farto de cansar-se.

A minha vida mude-a Deus ou finde-a...

Deixe-me estar aqui, nesta cadeira,

Até virem meter-me no caixão.

Nasci pra mandarim de condição,

Mas falta-me o sossego, o chá e a esteira.

Ah que bom que era ir daqui de caída

Prà cova por um alçapão de estouro!

A vida sabe-me a tabaco louro.

Nunca fiz mais do que fumar a vida.

E afinal o que quero é fé, é calma,

E não ter estas sensações confusas.

Deus que acabe com isto! Abra as eclusas -

E basta de comédias na minh'alma!

No Canal de Suez, a bordo.

3 /1914

ODE TRIUNFAL

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas

Tenho febre e escrevo.

Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,

Para a beleza disto totalmente desconhecida

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!

Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!

Em fúria fora e dentro de mim,

Por todos os meus nervos dissecados fora,

Por todasas papilas fora de tudo com que eu sinto!

Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,

De vos ouvir demasiadamente de perto,

E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um

De expressão de todas as minhas sensações,

Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza

Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força -

Canto, e canto o presente, e também o passado e o

Porque o presente é todo o passado e todo o futuro

E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes

Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio

E pedaços do Alexandre Magno do século talvez

Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do

Andam por estas correias de transmissão e por estes

Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,

Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se

Ser completo como uma máquina!

Poder ir na vida triunfante como um automóvel

Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,

Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me

A todos os perfumes de óleos e calores e carvões

Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

Fraternidade com todas as dinâmicas!

Promíscua fúria de ser parte-agente

Do rodar férreo e cosmopolita

Dos comboios estrénuos.

Da faina transportadora-de-cargas dos navios.

Do giro lúbrico e lento dos guindastes,

Do tumulto disciplinado das fábricas,

E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias

Horas europeias, produtoras, entaladas

Entre maquinismos e afazeres úteis!

Grandes cidades paradas nos cafés,

Nos cafés - oásis de inutilidades ruidosas

Onde se cristalizam e se precipitam

Os rumores e os gestos do Útil

E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do

Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!

Novos entusiasmos de estatura do Momento!

Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às

Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos!

Actividade internacional, transatlântica,

Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,

Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,

E Piccadillies e Avenues de l'Opéra que entram

Pela minh'alma dentro!

Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la foule!

Tudo o que passa, tudo o que pára às montras!

Comerciantes; vadios; escrocs exageradamente

Membros evidentes de clubes aristocráticos;

Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente

E paternais até na corrente de oiro que atravessa o

De algibeira a algibeira!

Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!

Presença demasiadamente acentuada das cocotes

Banalidade interessante(e quem sabe o quê por

Das burguesinhas, mãe e filha geralmente,

Que andam na rua com um fim qualquer;

A graça feminil e falsa dos pederastas que passam,

E toda a gente simplesmente elegante que passeiae se

E afinal tem alma lá dentro!

(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)

A maravilhosa beleza das corrupções políticas,

Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,

Agressões políticas nas ruas,

E de vez em quando o cometa dum regicídio

Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus

Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!

Notícias desmentidas dos jornais,

Artigos políticos insinceramente sinceros,

Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes -

Duas colunas deles passando para a segunda página!

O cheiro fresco a tinta de tipografia!

Os cartazes postos há pouco, molhados!

Vients-de-paraître amarelos com uma cinta branca!

Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,

Como eu vos amo de todas as maneiras,

Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto

E como o tacto(o que palpar-vos representa para mim!)

E com a inteligência como uma antena que fazeis

Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!

Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da

Química agrícola, e o comércio quase uma ciência!

Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,

Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da

Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos

Ó fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos

Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!

Olá grandes armazéns com várias secções!

Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e

Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é

Eh, cimento armado, beton de cimento, novos

Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!

Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos,

Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.

Amo-vos carnìvoramente,

Pervertidamente e enroscando a minha vista

Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,

Ó coisas todas modernas,

Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima

Do sistema imediato do Universo!

Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,

Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes -

Na minha mente turbulenta e encandescida

Possuo-vos como a uma mulher bela,

Completamente vos possuo como a uma mulher bela

Que se encontra casualmente e se acha

Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!

Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!

Eh-lá-hô recomposições ministeriais!

Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos.

Orçamentos falsificados!

(Um orçamento é tão natural como uma árvore

E um parlamento tão belo como uma borboleta).

Eh-lá o interesse por tudo na vida,

Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras

Até à noite ponte misteriosa entre os astros

E o mar antigo e solene, lavando as costas

E sendo misericordiosamente o mesmo

Que era quando Platão era realmente Platão

Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro,

E falava com Aristóteles, que havia de não ser

Eu podia morrer triturado por um motor

Com o sentimento de deliciosa entrega duma

Atirem-me para dentro das fornalhas!

Metam-me debaixo dos comboios!

Espanquem-me a bordo de navios!

Masoquismo através de maquinismos!

Sadismo de não seiquê moderno e eu e barulho!

Up-lá hô jockey que ganhaste o Derby,

Morder entre dentes o teu cap de duas cores!

(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma

Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!)

Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!

Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas,

E ser levado da rua cheio de sangue

Sem ninguém saber quem eu sou!

Ó tramways, funiculares, metropolitanos,

Roçai-vos por mim até ao espasmo!

Hilla! hilla! hilla-hô!

Dai-me gargalhadas em plena cara,

Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas,

Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das

Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar

Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de

Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de

As dissensões domésticas, os deboches que não se

Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu

E os gestos que faz quando ninguém pode ver!

Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,

Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome

Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos

Em crispações absurdas em pleno meio das turbas

Nas ruas cheias de encontrões!

Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a

Que emprega palavrões como palavras usuais,

Cujos filhos roubam às portas das mercearias

E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e

Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de

A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa

Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.

Maravilhosa gente humana que vive como os cães,

Que está abaixo de todos os sistemas morais.

Para quem nenhuma religião foi feita,

Nenhuma arte criada,

Nenhuma política destinada para eles!

Como eu vos amo a todos, porque sois assim,

Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem

Inatingíveis por todos os progressos,

Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!

(Na nora do quintal da minha casa

O burro anda à roda, anda à roda,

E o mistério do mundo é do tamanho disto.

Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.

A luz do sol abafa o silêncio das esferas

E havemos todos de morrer,

Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,

Pinheirais onde a minha infância era outra coisa

Do que eu sou hoje...)

Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!

Outra vez a obsessão movimentada dos ónibus.

E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo

De todas as partes do mundo,

De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,

Que a estas horas estão levantando ferro ou

Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapasde ferro ondulado!

Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó

Eh-lá grandes desastres de comboios!

Eh-lá desabamentos de galerias de minas!

Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!

Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,

Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,

Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,

A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,

E outro Sol no novo Horizonte!

Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto

Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,

Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?

Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,

O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,

O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,

O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes

Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.

Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,

Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos,

Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de

Engenhos, brocas, máquinas rotativas!

Eia, eia! eia!

Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!

Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do

Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!

Eia todo o passado dentro do presente!

Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!

Eia! eia! eia!

Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!

Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!

Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio,

Engatam-me em todos os comboios.

Içam-me em todos os cais.

Giro dentro das hélices de todos os navios.

Eia! eia-hô! eia!

Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!

Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!

Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a

Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!

Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-la!

Hé-la! He-hô! H-o-o-o-o-o!

Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-!

A não ser eu toda a gente e toda a parte!

Londres.

DOIS EXCERTOS DE ODES

(FINS DE DUAS ODES, NATURALMENTE)

I

.........................................................................................

Vem, Noite antiquíssima e idêntica,

Noite Rainha nascida destronada,

Noite igual por dentro ao silêncio, Noite

Com as estrelas lantejoulas rápidas

No teu vestido franjado de Infinito.

Vem, vagamente,

Vem, levemente,

Vem sòzinha, solene, com as mãos caídas

Ao teu lado, vem

E traz os montes longínquos para o pé das árvores

Funde num campo teu todos os campos que vejo,

Faze da montanha um bloco só do teu corpo,

Apaga-lhe todas as diferenças que de longevejo,

Todas as estradas que a sobem,

Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao

Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,

E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,

Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,

Na distância sùbitamente impossível de percorrer.

Nossa Senhora

Das coisas impossíveis que procuramos em vão,

Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à

Dos propósitos que nos acariciam

Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas,

Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto.

E que doem por sabermos que nunca os realizaremos.

Vem, e embala-nos,

Vem e afaga-nos.

Beija-nos silenciosamente na fronte,

Tão levemente na fronte que não saibamos que nos

Senão por uma diferença na alma.

E um vago soluço partindo melodiosamente

Do antiquíssimo de nós

Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha

Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos

Porque os sabemos fora de relação com o que há na

Vem soleníssima,

Soleníssima e cheia

De uma oculta vontade de soluçar,

Talvez porque a alma é grande e a vida pequena,

E todos os gestos não saem do nosso corpo

E só alcançamos onde o nosso braço chega,

E só vemos até onde chega o nosso olhar.

Vem, dolorosa,

Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,

Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados,

Mão fresca sobre a testa em febre dos Humildes,

Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.

Vem, lá do fundo

Do horizonte lívido,

Vem e arranca-me

Do solo de angústia e de inutilidade

Onde vicejo.

Do solo de inquietação e vida-de-mais e falsas-sensações

Donde naturalmente nasci.

Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,

E entre ervas altas malmequer ensombrado,

Folha a folha lê em mim não sei que sina

E desfolha-me para teu agrado,

Para teu agrado silencioso e fresco.

Uma folha de mim lança para o Norte,

Onde estão as cidades de Hoje cujo ruído amei como a

Outra folha de mim lança para o Sul,

Onde estão os mares e as aventuras que se sonham.

Outra folha minha atira ao Ocidente,

Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,

E há ruídos de grandes máquinas e grandes desertos

Onde as almas se tornam selvagens e a moral não chega.

E a outra, as outras, todas as outras folhas -

Ó oculto tocar-a-rebate dentro em minha alma -

Atira ao Oriente,

Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,

Ao Oriente pomposo e fanático e quente,

Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,

Ao Oriente budista, bramanista, xintoísta,

Ao Oriente que tudo o que nós não temos,

Que tudo o que nós não somos,

Ao Oriente onde - quem sabe? - Cristo talvez ainda

Onde Deus talvez exista com corpo e mandando tudo...

Vem sobre os mares,

Sobre os mares maiores,

Sobre os mares semhorizontes precisos,

Vem e passa a mão pelo seu dorso de fera,

E acalma-o misteriosamente,

Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!

Vem, cuidadosa,

Vem, maternal,

Pé ante pé enfermeira antiquíssima, que te sentaste

À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,

E que viste nascer Jeová e Júpiter,

E sorriste porque tudo te é falso, salvo a treva e o silêncio,

E o grande Espaço Misterioso para além deles...

Vem, Noite silenciosa e extática,

Vem envolver na noite manto branco

O meu coração...

Serenamente como uma brisa na tarde lenta,

Tranquilamente com um gesto materno afagando.

Com as estrelas luzindo(ó Mascarada do Além!)

Pó de ouro no teu cabelo negro,

E o quarto minguante máscara misteriosa sobre a tua

Todos os sons soam de outra maneira

Quando tu vens.

Quando tu entras baixam todas as vozes,

Ninguém te vê entrar.

Ninguém sabe quando entraste,

Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,

Que tudo perde as arestas e as cores,

E que no alto céu ainda claramente azul e branco no

Já crescente nítido, ou círculo amarelento, ou mera

A lua começa o seu dia.

II

Ah o crepúsculo, o cair da noite, o acender das luzes

E a mão de mistério que abafa o bulício,

E o cansaço de tudo em nós que nos corrompe

Para uma sensação exacta e activa da Vida!

Cada rua é um canal de uma Veneza de tédios

E que misterioso o fundo unânime das ruas,

Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre,

Ó do "Sentimento de um Ocidental"!

Que inquietação profunda, que desejo de outras coisas,

Que nem são países, nem momentos, nem vidas,

Que desejo talvez de outros modos de estados de alma

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