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lêr,pela primeira vez, estes contos, e a anciedade com que acompanhei o homem-urso na sua dolorida peregrinação enfeudado ao diabo... desejava falar n'esta pequenina collecção destacando um por um dos seus lindos episodios, mas... tenho que cinjir-me ao pequeno espaço que me é dado.
Termino, pois, dizendo-lhe: em nome das crianças portuguêzas agradeço o cuidado que tem tido em lhes escolher lindos contos para seu prazer, e em nome das mães pedindo-lhe que não desanime na empreza.
A literatura portuguêza é ainda pobre, apezar do que ultimamente se tem feito; precisamos mais e mais...
As crianças tudo merecem, ellas que nos lêem com tanto enthusiasmo e tão sinceramente nos estimam.
Creia-me
Anna de Castro Osorio.
Era uma vez um homem muito rico, mas muito avarento, que tinha como creado um rapaz honesto e activo, como não haverá muitos; todas as manhans o moço se erguia ao romper da alva e só se deitava ao ultimo cantar do gallo.
Quando havia algum trabalho mais penoso, ante o qual todos recuavam, o rapaz fazia-o, contente, satisfeito e sem sombra de azedume.
Logo que acabou o primeiro anno de permanencia em casa do avarento, que não estipulára soldada, não recebeu um ceitil de paga, pensando de si para si que o moço, não tendo dinheiro, não se tentaria com outra collocacão. O rapaz calou-se e continuou a trabalhar como d'antes; ao cabo de dois annos, o avarento nada deu e o rapaz permaneceu no seu mutismo.
Ao fim do terceiro anno, o rico, espicaçado pela consciencia, metteu a mão ao bolso para remunerar o fiel creado, mas, raciocinando, arrependeu-se e tirou a mão vasia. O rapaz exclamou então:
- Patrão servi-o tres annos o melhor que me foi possivel; agora quero vêr mundo e por isso peço que me pague as soldadas que me deve.
- Tens razão - respondeu o rico avarento - fiquei sempre muito satisfeito com o teu trabalho e a tua boa-vontade, e por isso vou remunerar-te como mereces. Aqui tens tres escudos novos; é um por cada anno que me serviste.
O rapaz, que andava sempre alegre e que era d'uma grande simplicidade no que respeitava a dinheiro, julgou ter recebido uma fortuna que lhe permittiria viver vida folgada por largos annos.
Disse adeus ao antigo patrão e foi-se embora, atravessando montes e valles, cantando, saltando e alegre que nem um passarinho.
Ao acercar-se d'um monte, viu sair um velhinho muito corcovado que lhe gritou:
- Olé companheiro, não pareces levar em conta de pesares a tua vida?!
- Que ganho eu em me apoquentar? - retorquiu o moço - Tenho na algibeira a soldadade tres annos de trabalho.
- E a quanto monta essa fortuna?
- A tres escudos novinhos, muito luzidios. Olha, sentel-os trincolejar, quando lhes toco com as mãos?
- Ora ouve cá - tornou o gnomo, de bom coração como se vae vêr. Eu estou muito velhinho, e forças para trabalhar já não tenho; tu, que és novo e forte, estás ainda em bom tempo de ganhares a vida.
O rapaz, que era de boa indole, apiedou-se do velho gnomo e fez-lhe presente dos tres preciosos escudos que tanto prazer lhe davam.
- Como és esmoler - expressou-se então o genio bom em figura de gnomo - dou-te licença para que me peças tres cousas que são a paga dos teus tres escudos.
- Então, pois sim! - fez o rapaz incredulamente - Isto que tu queres fazer é só do dominio das phantasias para entreter creanças. Mas, emfim, sempre quero experimentar. Desejo então: uma espingarda que acerte logo no que eu alveje; um violino que tenha a virtude de forçar a bailar todos quantos me oiçam; e, finalmente, que toda e qualquer pessoa me conceda, sem mais a quellas, a graça que eu pedir.
Ilustração da página 22
- Ai, ai! lastimava-se o infeliz judeu
- És modesto no pedir - retrucou o gnomo que, curvando-se, tirou do monte uma espingarda, e um bonito violino que se podia metter na
algibeira. Aqui tens - continuou o gnomo ao dar-lh'os - e fica sciente de que serás servido sempre na primeira graça que solicitares.
O rapaz, jovialissimo, continuou a sua róta. Depois de caminhar um boccado deparou-se-lhe um judeu, muito feio, com barbas de chibo muito compridas e que estava absorto a ouvir o canto de uma avesinha.
- É extraordinario que um animal de tão pequeno talhe possua um trinado tão cheio. Quanto não daria eu para o ter engaiolado!
- Posso satisfazer o teu desejo - disse o rapaz que tinha ouvido as ultimas palavras, e apontando a espingarda ao passarinho este caiu atordoado em cima dos espinhos.
- Vá lá, seu maroto, vá lá buscar o passarinho.
- Tractas-me com crueldade - respondeu o judeu - mas não deixo de agradecer-te e vou apanhar a avesinha.
Em seguida metteu-se pelos espinhos custando-lhe a abrir caminho. De subito o rapaz teve uma estupenda lembrança: principiou a dar arcadas no violino. Logo o judeu ergueu as pernas e começou a saltar, a pular, a torcer-se todo, ficando preso nos espinhos dos ramos, em que se achava e que lhe espicaçavam a cara, arrancando-lhe asbarbas; ficou com o vestuario todo rasgado e a cara a escorrer sangue.
- Ai, ai! - lastimava-se o infeliz judeu - Socega, aquieta-te, não toques mais n'esse amaldiçoado instrumento; aqui não é logar proprio para baile!
O azougado moço não fazia caso do pedido pensando com os seus botões:
- Este rabino esfolou tanto infeliz em quanto poude, que é justo que seja esfolado agora!
E de novo tomou o violino tirando accordes mais ligeiros. O pobre judeu, forçado a acompanhar o compasso, pulava e saltava; a cara cada vez estava mais ensanguentada, o fato desfazia-se em farrapos e o pobre velho gemia de dôr. A subitas gritava:
- Apieda-te de mim, pelas barbas de Abrahão, que em paga te darei uma bolsa cheia de dinheiro que trago commigo.
- Alegras-me tanto com essa boa-nova que vou guardar o dinheiro. Antes, porém, quero dar-te os meus parabens pela maneira graciosa e original por que danças! É uma perfeição!
O judeu então, entregando-lhe a bolsa que promettêra, suspirou
immenso, emquanto que o alegre moço continuou a andar, cantando. Quando já o não avistou, o rabino, não podendo conter o seu rancor, exclamou:
- Musico das duzias, estás a contas commigo. Grande marau! Has de pagar-me a partida mais cara do que ossos!
Tendo com essa fala dado vasão ao seu odio, seguiu por atalhos e alcançou a cidade mais proxima antes que o rapaz apparecesse. Uma vez lá, foi queixar-se ao juiz n'estes termos:
- Venho aqui pedir justiça, senhor, para um maroto que me atacou maltractou e roubou o que eu trazia. A prova de que não minto é olhar-me a maneira porque vem o fato e a minha cara. Forçou-me a dar-lhe a bolsa que trazia cem moedas d'ouro, que eram todo o meu peculio, as economias que consegui com o meu trabalho, o unico bem que possuia. Faça todo o possivel para que esse thesouro me seja restituido.
Ilustração da página 30
O moço então... tocou o mais possivel...
- Foi com alguma arma que o gatuno te pôz assim? - perguntou a autoridade.
- Nada, não senhor. Agarrou-me e agatanhou-me. É ainda moço, e traz uma espingarda e um violino; com estes dados facilmente se conhece.
O magistrado pôz em campo os guardas, que depressa viram o indigitado marau, que muito tranquilamente se encaminhou para essa localidade. Deram-lhe voz de prisão e trouxeram-n'o ante o magistrado e o judeu, que repetiu a accusação.
- Não toquei n'essa creatura nem com um dedo - defendeu-se o rapaz - assim como não lhe tirei á força o dinheiro que elle trazia;offereceu-me da melhor vontade para que eu não tocasse mais no violino, cujos accordes o faziam nervoso!
- É mentira! - exclamou o rabino - Está a mentir impunemente!
- Está resolvida a questão? - ajuntou o magistrado - pois é caso extraordinario um judeu dar de mão beijada uma bolsa com ouro, só por não ouvir um boccado de musica. Pois senhor: a sentença do seu mau acto está lavrada: vae ser enforcado immediatamente!
O verdugo - que se havia ido chamar, segurou o innocente moço, conduziu-o á forca, que já estava erguida na praça principal onde accorreu toda a cidade em pezo, e o rabino fôra o primeiro a mostrar-se
fazendo menção de soccar o pobre condemnado, verberando:
- Marau, vaes ter a recompensa que te é devida!
O moço conservou-se muito tranquillo; subiu sosinho a escada appoiada á forca; ao chegar ao topo, virou-se para o juiz já togado, que viera vistoriar o patibulo e solicitou-lhe:
- Antes de ter o nó na garganta, concede-me um derradeiro favor?
- Concedo - respondeu o magistrado - desde o momento em que não seja o perdão!
- Nada d'isso é, pois não sou tão exigente... desejava apenas tirar uns ligeiros accordes do violino!
Ao ouvir taes palavras, o rabino deu um estridente grito de susto e pediu encarecidamente ao juiz que não consentisse!
- Qual a razão porque não hei de conceder a graça que este homem me pediu, se é a unica alegria que por instantes posso dar-lhe? Tragam-lhe o violino.
- Ai, meu Deus! - lamentou o rabino ao querer fugir, mas sem que lhe fosse possivel abrir caminho pela compacta massa de povo que enchia a praça.
- Dou-lhe uma peça d'ouro - prometteu elle no auge da aflicção - se me amarrar com força ao pau da forca!
N'esse instante, porém, o rapaz deu o primeiro toque no violino. O magistrado, o escrivão, o beleguim, os guardas, emfim tudo o que compunha o corpo da magistratura da terra, os circumstantes, o proprio judeu, tiveram um estremecimento; ao segundo toque, todos ergueram as pernas, o proprio verdugo desceu a escada e collocou-se em pé de dança.
O moço então - ao vêl-os n'aquella pouco parlamentar attitude - tocou o mais possivel, e agora os vereis: o povo fazia cabriolas; o juiz e o judeu saltavam como que movidos por molas; rapazinhos, velhos, magros, gordos, tudo dançava; se até os cães se erguiam nas patas de traz e dançavam como todos! O condemnado deu uns accordes mais fortes e n'essa occasião era inexplicavel o movimento: pareciam possessos de algum espirito ruim, batendocom as cabeças umas nas outras, pizando-se, acotovellando-se, atropellando-se. Gemiam com dores, e o magistrado, afflicto, fatigadissimo, pediu:
- Não toques mais que eu perdôo-te! Foi o que o moço quiz ouvir, visto
que, concordando que o gracejo fôra longo, parou e guardou o violino no bolso, desceu os degraus e veiu postar-se em frente do rabino que, esfalfado, extenuado exhausto, se sentára na rua, respirando a custo.
- Agora és tu quem vaes confessar a proveniencia da bolsa que me déste, com peças d'ouro. Não mintas, de contrario pego novamente no violino e tornas a dançar uma farandola! - taes as palavras que o rapaz dirigiu ao judeu, que confessou terrificado:
- Roubei-a, roubei-a, tu tiveste jus a ella pela tua honestidade; dei-t'a para que não tocasses mais no violino!
Apparecendo o juiz, já um pouco refeito do cançasso, inqueriu do que se havia passado e provando-se á evidencia que tinha havido roubo, mandou enforcar o rabino.
Era uma vez um rapaz que dava pelo nome de João e que esteve a servir durante sete annos n'um logarejo de provincia. Ao cabo d'esse tempo, despediu-se do patrão e disse-lhe:
- Patrão, terminou o meu tempo de serviço para que fôra chamado, mas, desejando regressar para casa de minha mãe, precisava que me pagasse o meu salario.
- Como fôste sempre fiel e honesto - respondeu o patrão - mereces boa paga; e, pronunciando estas palavras, deu-lhe uma barra quase tão grande como a cabeça do seu antigo creado.
João tirou o lenço da algibeira, embrulhou n'elle a barra, pôl-a aos hombros e metteu pernas a caminho em direitura á casa da mãe. Andando sempre, ainda que custando-lhe a andar, por causa do peso do fardo, viu passar a seu lado um viandante trotando satisfeito n'um bonito e fogoso corcel.
- Que bom ha de ser andar a cavallo! - exclamou João em tom alto. - Aquelle homem vae alli commodamente sentado, não dá topadas nas pedras, não estraga as botas e anda sem que dê por isso.
- Mas olha lá, ó rapaz - respondeu o viandante que lhe ouvia a exclamativa - porque é que vaes a pé?
- Porque assim me é necessario - tornou João - Levo uma trouxa muito pesada que tem de ir para casa; é ouro, é certo, mas pesa-me como
chumbo e quasi me custa levantar o pescoço!
Ilustração da página 37
- Queres tu entrar n'uma combinação commigo?
- Queres tu entrar n'uma combinação commigo? - aventurou o cavalleiro, que fizera estacar o animal - Faze troca: eucedo-te o meu bonito cavallo dando-me tu a barra d'ouro!
- Com o maximo prazer! Advirto-o, porêm, de que o carrego é pesado!
O viandante depressa se desmontou do ginete, ajudou João a montar-se e em seguida tomou a barra, dizendo ao ingenuo moço, emquanto lhe dava as guias:
- Assim que desejes andar tão veloz como o vento, basta dares um estalido com a lingua e gritares: upa, upa!
João ficou louco de contente, apenas se viu escarranchado no cavallo, e partiu a rapido galope. Ao fim de certo tempo, lembrou-se d'ir mais depressa ainda, e, dando um estalido com a lingua, incitou: upa upa! O animal, comprehendendo a indicação, largou n'uma corrida desenfreada, dando grandes upas e taes foram elles que o alegre João, não podendo suster-se no dorso do animal, caiu estatelado no meio da estrada, quasi á beira d'um poço. O cavallo continuou a correr, mas um aldeão que vinha em sentido inverso, trazendo uma vacca, agarrou-o pela redea e assim o levou para juncto de João que, levantando-se, estava a vêr se havia soffrido algum desastre com o trambulhão.
- Olha que asneira, montar a cavallo! Arrisca-se a gente a deparar um animal como este que nos atira de pernas ao ar! Nunca mais caio n'outra. Agradeço o seu favor, mas não me fale no cavallo; se fosse uma vaquinha, isso então era outro cantar; basta levál-a deante de si, com certo geitinho; e não é só isso: dá tambem o leite com que se faz a manteiga e o queijo que nos sustenta. Que não faria eu para assim possuir um animal!
- Se faz n'isso muito empenho - alvitrou o aldeão eu não ponho duvida em a trocar pelo seu cavallo.
João açambarcou logo a ideia, cheio de satisfação; o aldeão montou o animal e depressa se eclipsou.
João tocou a vacca, que ia na sua frente muito devagar, emquanto ia magicando nas vantagens da troca que acabára de fazer:
- Desde o momento em que me não falte uma fatia de pão, e com
certeza não será isso o que me ha de faltar, posso, quando a fome me aperte, comer manteiga ou queijo, se tiver seccuras, munjo a vacca, e bebo um excellente leite. Que mais podes ambicionar, ó Janeco?
Ao acercar-se d'um albergue, parou e querendo possuir alimento para sempre, deu cabo de toda a comida e gastou os derradeiros escudos n'uma cerveja. De seguida, tornou a pôr-se a caminho da casa precedido pela pachorrenta vacca.
O sol estava a pino e escaldava o rapaz e João, encontrando-se n'um sitio desarborizado, sentiu tanta sêde que se lembroude beber leite; para esse fim, amarrou a vacca a uma sebe e, descarapuçando-se, começou a mungir o animalejo, mas por mais esforços que empregasse não conseguiu uma gottinha de leite. Como era leigo no assumpto, magoou a vacca que, com a dôr, lhe deu um coice que atirou longe João, que com a dôr desmaiou.
Por felicidade, acercou-se um homem que levava, n'um carrinho de mão, um porco ainda pequeno.
- Que diabo foi isso? - perguntou o homensinho, ajudando-o a pôr em pé.
João narrou-lhe o succedido; o homem do porco offereceu-lhe a borracha, dizendo-lhe:
- Ande, beba-lhe um gole para o pôr firme! E quer saber? A vacca está velha; boa apenas para puxar a uma carroça ou então para ir para o matadouro. Por esse motivo não é para admirar que lhe não conseguisse tirar leite.
- Oh co'a breca! - exclamou João, arranjando o cabello que se havia emmaranhado com a queda - Quem o diria! O que é verdade é que, matando-se, a vacca ainda alimenta muita gente, mas como acho a carne pouco saborosa, não me servia. Agora se fosse um porquito! Isso era ouro sobre azul! Eu então que sou doido por chispe com feijão branco e chouriço de sangue!
- Ah, sim?! - lembrou o homem - Então tome lá o porco em troca da vacca!
- Deus o ajude! - acceitou João dando a vacca; puxou o porco pela corda que o segurava no carrinho.
Ilustração da página 43
... a vacca deu-lhe um coice...
Á medida que ia andando, ia pensando, que tudo lhe corria em maré de rosas; mal tinha uma contrariedade e logo lhe desappareceu. N'isto dá de rosto com um rapazinho que levava debaixo do braço um gordo pato. Deram-se os bons dias e começaram de conversa. João narrou os seus feitos, gabando-se da sua ventura; em compensação, o rapazito disse que o pato era uma encommenda para um baptisado que tinha logar na proxima localidade.
- Tome-lhe o peso - aconselhou o rapazelho, agarrando o pato pelas azas - Pesa bem, não é assim?! Não é caso para espantos, pois ha mais de dois mezes que foi para a engorda. Quem o cosinhar póde gabar-se de apanhar uma excellente enxundia!
- E é verdade que sim! - appoiou o nosso João - Está gordo que é uma belleza! Comtudo, o meu porquinho tambem não está mau!
O rapazito calou-se, mas não fazia outra coisa senão olhar para um lado e para o outro inquieto; em seguida, meneando a cabeça, disse:
- Quer saber uma cousa?Roubaram não ha muitas horas um porco a uma das auctoridades da terra por onde eu agora fiz caminho. Está-me cá a parecer que é esse mesmo, sim, quasi que ia jurar! Que mau boccado lhe fariam passar se o vissem com elle. O menos que lhe faziam era mettêl-o n'uma enxovia muito escura!
João, muito assustado, exclamou:
- O meu amigo é que me póde valer n'estes apuros! Desde que conhece os cantos á villa, nada mais facil que occultál-o; dê-me o pato que lhe cedo por troca o porco.
- Corro grave risco com a transacção - hesitou o moço - mas para o livrar das mãos da justiça, acceito-a!
Agarrou a corda e, puxando pelo porco, depressa se esgueirou por um atalho. O nosso heroe, descuidado e alegre, continuou a andar, raciocinando:
- Fazendo bem as contas, eu ainda ganho com a troca: a carne do pato é muito saborosa e com as pennas faço uma almofada.
Depois de haver transposto a derradeira localidade antes de chegar á sua aldeia natal, notou um amolador parado com a sua roda que fazia girar cantando.
João estacou e ficou a olhar para o que o homem estava fazendo; em seguida, dirigiu-lhe a palavra.
- Pela sua alegria se vê que tudo lhe corre no melhor dos mundos possiveis!
- Certamente, todo o officio é ouro em fio, um bom amolador anda sempre endinheirado. Onde comprou esse bello pato?
- Comprar não comprei... foi uma troca que fiz! troquei-o por um porco.
- E o porco?
- Foi em troca d'uma vacca!
- E a vacca?
- Trocada por um cavallo!
- E o cavallo?
- Por uma bola d'ouro do tamanho da minha cabeça!
- E esse ouro?
- Foi a paga que recebi de sete annos de serviço!
- Sim, senhor! - exclamou o amolador - Não se perde! Se não mudar de tactica ainda ha de junctar muito dinheiro.
- Parece que sim! - retorquiu João - Que hei de agora fazer para o conseguir?
- Faça-se amolador. É-lhe necessaria apenas uma pedra de amolar... o resto depois vem com o andar dos tempos. Tenho aqui uma; já está um pouco gasta, mas para lh'a vender não, troco-a pelo pato. Convem-lhe?
- Se convêm! - acceitou logo João - Se succeder, como diz, que nunca me ha de faltar dinheiro, serei um rei pequeno, sem cuidados, sem ralações e sem trabalho!
Entregou em seguida o pato ao amolador, que lhe deu uma pedra de amolar e uma outra que apanhára do chão.
- Olhe - dissepara o heroe do conto - aqui tem mais uma; esta é magnifica para fabricar uma bigorna e endireitar pregos. Tome sentido n'ella.
João tomou as duas pedras e lá se foi muito contente, com os olhos brilhando de alegria.
- Nasci dentro de algum folle com certeza; pensou de si para si - tenho sorte em tudo!
Entretanto como já andava desde manhã sentiu-se fatigado; estava com fome, mas nada tinha com que a matar, por ter comido todo o farnel quando da troca da vacca. Custou-lhe a andar e volta e meia tinha
que parar para descançar; as pedras faziam-lhe muito pezo e disse com os seus botões que era bem bom que não as levasse, pois que lhe impediam andar mais ligeiro. Arrastando-se conforme pôde, chegou proximo de uma fonte ficando contente por encontrar com que molhar as guellas e crear alento para a caminhada.
Não querendo estragar as pedras, pôl-as no rebordo da fonte e curvou-se para encher o barrete da limpida agua que corria da bica; mas, tocando-lhes sem dar por isso, as pedras rebolaram e caíram com grande ruido dentro d'agua.
João, assim que as viu desapparecer, saltou de contentamento e, ajoelhando-se, agradeceu a Deus, com os olhos marejados, a mercê que lhe havia feito de o livrar d'aquelle peso.
- Era esta a unica cousa que me incommodava! Não creio que haja rapaz mais feliz do que eu!
E de coração ao largo, não possuindo mais cousa alguma, pôz
novamente pernas a caminho e só parou quando topou com a porta de
casa de sua mãe.
Em epochas bastante afastadas houve um rapazito que sentou praça e desde então mostrou heroicidade, sendo o primeiro a avançar ao chover das balas. Emquanto durou a guerra, tudo lhe correu ás mil maravilhas; mas assim que se assignaram as pazes, o nosso soldado recebeu a soldada que lhe cumpria e o commandante da columna, a que o mancebo pertencia, disse-lhe que fosse para onde lhe aprouvesse, pois no regimento já não era preciso. Os paes haviam morrido, e o infeliz, n'estas condições, não tinha patria. Não sabendo a quem recorrer, foi ter com os irmãos pedir-lhes albergue emquanto não havia novo rompimento de hostilidades. Ora, como os irmãos eram muito ruins responderam-lhe:
- Em que poderemos empregar-te? Em nada nos poderias ser util! Tracta de te arrumar algures.
Ao pobre soldado só ficára a espingarda; pôl-a ao hombro, e resolveu correr mundo. Depressa chegou a uma charneca, onde vegetava um numero de arvores muito limitado. Sentou-se cabisbaixo á sombra e
começou a matutar na triste situação a que se via reduzido.
- Estousem dinheiro - pensou - só conheço o officio das armas, e agora que estão feitas as pazes, este officio de nada me póde servir, e o meu fim é morrer de fome.
De repente, ouviu um ruido; voltou-se e viu, defronte de si, um desconhecido, com um casaco verde; estava vestido com esmero, mas tinha pés-de cabra.
- Eu sei o que te falta - disse-lhe o estranho personagem - Conceder-te-hei tantas riquezas quantas queiras, mas é necessario que não sejas medroso, pois n'esse caso não estou para tentar fortuna.
- Soldado e medo são cousas que não se casam - respondeu o rapaz - Podes tentar.
- N'esse caso, olha para traz! - tornou o diabo feito homem.
O soldado olhou e viu um enorme urso que avançava para elle urrando.
- Ah! elle é isso?! Espera lá que já te vaes calar de vez! - e o soldado assim falando apontou e fez fogo tão certeiro que a bala entrou no focinho do pesado animal que caiu redondo, sem um gemido.
- Está provado que não te falta coragem! Falta ainda outra condição para o contracto.
- Desde o momento em que não seja cousa alguma contraria á minha saude, estou disposto a tudo o que quizeres.
- A condição é esta: durante sete annos não te lavarás, nem farás a barba, nem te pentearás, nem cortarás as unhas e, por ultimo, nem resarás. Se te agrada a proposta, dou-te um fato e um manto que não tirarás senão ao cabo d'esses sete annos. Se morreres entretanto, cairás em meu poder; se, pelo contrario, viveres muito tempo, conquistarás a liberdade e serás rico o resto de teus dias.
O soldado reflectiu no perigo que corria, mas, como varias vezes havia affrontado a morte, decidiu-se a arriscar a vida na empreza, e acceitou o alvitre. O diabo despiu o casaco verde, que fez vestir ao soldado, accrescentando:
- Desde que vistas este casaco não te ha de faltar dinheiro; mette a mão na algibeira e verás que te não minto.
Dicto isto tirou a pelle ao urso morto e presenteou com ella o soldado a quem disse:
- Este é que é o teu manto; servir-te-ha de cama, porque não te é permittido deitar-te sob lençoes. Como consequencia d'este nosso contracto todos te chamarão Pelle d'urso.
Ao terminar a indicação, o demo sumiu-se.
O soldado vestiu o casaco, metteu a mão á algibeira e achou o que o estupendo personagem lhe dissera; em seguida, envolvendo-se na pelle d'urso, pôz-se a caminho, mostrando-se sempre e em toda a parte bondoso e esmoler. O primeiroanno correu bem, mas ao segundo anno já era um monstro; o cabello tapava-lhe os olhos completamente; a barba parecia um grosseiro boccado de feltro; os dedos afuselavam-se em garras e o rosto estava tão sujo que se houvesse semeado n'elle qualquer planta, esta não deixaria de se desenvolver. A sua presença afugentava toda a gente; como, porêm, por todos os logares em que passava, elle distribuia esmolas aos pobres, pedindo-lhes que orassem por elle, afim de que não morresse antes de sete annos, e como usava pagar depressa e bem, nunca ficára ao relento, e tinha sempre quem lhe désse dormida.
No meiado do quarto anno, chegou a uma estalagem, mas o estalajadeiro recusou-se a dar-lhe gasalhado; este homem nem mesmo consentiu que o estranho hospede fosse dormir para a estrebaria, receoso de que a presença de similhante exemplar da especie humana lhe espantasse os cavallos. Comtudo Pelle d'urso metteu a mão na algibeira, tirando um punhado de dinheiro, e o estalajadeiro á vista do diabolico iman curvou-se á imperiosa ambição e consentiu que o estranho viandante ficasse n'um pessimo quarto interior, e ainda sob condição de que não se mostraria a pessoa alguma, temendo sempre que a casa, por aquelle dever de hospitalidade, perdesse os créditos.
Emquanto Pelle d'urso, sentado sósinho no humilde casinholo, pensava tristemente na lentidão dos annos que ainda tinha a passar sob aquelles medonhos trajes, ouviu queixumes e suspiros que partiam d'um quarto proximo. Como era dotado de bom coração - e sem se lembrar do pedido do hospedeiro - abriu a porta e viu um velho que chorava a bom chorar e que, dolorosamente, punha as mãos na cabeça. Pelle d'urso acercou-se do companheiro de estalagem que se ergueu subitamente querendo fugir. Ao ouvir, porêm, a voz da estranha creatura, serenou, e a sua conversa amavel fêl-o animar a confiar-lhe as maguas que o affligiam. Os seus recursos iam diminuindo a olhos vistos; as filhas e elle estavam sujeitos a soffrer as maiores privações, e tão pobre era que não podia
pagar hospedagem ao estalajadeiro, razão pela qual o iam prender.
- Se outro não é o vosso cuidado, consolae-vos - disse Pelle d'urso ao ouvir a narrativa do velho - A mim não me falta dinheiro.
Chamou o estalajadeiro e pagou-lhe tudo o que o velho lhe devia, entregando a este uma bolsa recheadinha d'ouro.
Quando o velho se viu tão facilmente livre de apoquentações, não teve palavras para exprimir o seu grande reconhecimento; ao cabo de algum tempo, disse a Pelle d'urso:
Ilustração da página 61
... viu defronte de si um desconhecido
- Siga-me; as tres filhas quepossuo são perfeitas maravilhas de belleza; auctorizo-o a
escolher uma
para mulher. Assim que souberem da boa-acção que practicou em
meu favor, serão as primeiras a acceder ao meu desejo. Realmente, o
seu aspecto é exquisito e pouco attrahente, mas a que escolher
saberá disfarçar a primeira impressão que é, decerto,
desagradavel.
A proposta agradou a Pelle d'urso, que de muito boamente acompanhou o velho. Apezar de afastados de casa, a primeira filha ao vêl-o fugiu, transida de medo, aos gritos. A segunda - valha a verdade - não fugiu senão depois de o ter bem examinado dos pés á cabeça.
- Como posso eu acceitar por marido um ser que não tem aspecto humano? Marido por marido, então antes preferia o urso pardo que ultimamente se exhibiu pelas ruas, que dava ares de homem, vestindo um rico manto e de luvas calçadas! Era feio, mas facilmente me habituaria a vêl-o.
Quando coube a vez da mais novinha esta disse:
- Meu pae, este homem deve ter um bom coração, pois que duvida alguma teve em livral-o de apuros; se, para lhe provar a gratidão de que está possuido para com elle, lhe prometteu noiva, não se dirá que a sua palavra se não cumpre.
Que alegria não transpareceria no rosto do pobre soldado, se não estivesse tão velado pelo cabello! O seu coração rejubilou ao ouvir as boas palavras da linda moça! Tirou do dedo um annel que trazia, partiu-o em duas metades e deu uma das partes á rapariga, tendo antes d'isso
o cuidado de escrever o nome na parte que deu á promettida e o d'ella na metade com que ficou. Feito isto, despediu-se dos seus novos conhecimentos, dizendo-lhes:
- Tenho ainda de correr mundo durante tres annos; se voltar ao cabo d'esse tempo casamos; se não tornar, a sua palavra está desligada do compromisso, pois é prova segura de que morri; rogue a Deus para que me conserve a vida.
A infeliz namorada vestiu-se toda de negro, e sempre que se lembrava do seu promettido as lagrimas corriam-lhe abundantes. As irmans não se cançavam de a motejar e escarnecer.
- Acautela-te ao extenderes-lhe a mão, não vá elle dar-te a pata! - dizia-lhe a mais velha.
- Sê prudente, pois os ursos são traiçoeiros, e ainda que lhe agradasses, póde muito bem ser que depois te devore! - fazia côro a segunda irman.
- Tens de fazer-lhe todas as vontades, senão dá urros! - tornava a primeira.
E accrescentava a do meio:
- Sim, sim... e olha que a cerimonia deve ser bem divertida, pois os ursos dançam alegremente.
A pobrecreatura conservava-se alheia aos motejos que lhe não faziam diminuir o sentimento que nutria pelo bemfeitor de seu pae. Entretanto Pelle d'urso, percorrendo varios logares, continuava practicando o bem e semeando dinheiro a rôdo em esmolas, na esperança de que os mendigos rogariam por elle. Chegou finalmente o ultimo dia dos sete annos de caminheiro.
Tomou o caminho da charneca e foi sentar-se no mesmo sitio em que se havia sentado sete annos antes. Pouco tempo esteve só, pois que, segundos depois, sentiu soprar o vento e viu na sua frente o diabo olhando-o tristemente; em seguida restituiu ao viandante o seu antigo traje, recebendo em troca o casaco verde que lhe cedêra.
- Não te apresses - disse Pelle d'urso - primeiro tens que me arranjar convenientemente.
Se a lembrança agradou ou não ao demo é cousa que não podemos averiguar, mas o que é certo é que, com vontade ou sem ella, não teve outro remedio senão ir buscar agua, lavar Pelle d'urso, cortar-lhe o
cabello e as unhas, penteál-o e fazer-lhe a barba. Limpo e arranjado, Pelle d'urso voltou ao seu aspecto de soldado valente; nunca fôra tão formoso.
Assim que se viu livre do diabolico personagem de uma vez para sempre, o heroe do nosso conto sentiu-se leve que nem uma penna. Rapido se encaminhou para uma povoação proxima, comprou uma andaina de velludo, sentou-se n'uma elegante carruagem puxada a duas parelhas de cavallos brancos, e deu ordem ao cocheiro para se dirigir a casa da noiva. Pessoa alguma o reconheceu; e o futuro sogro, imaginando-o um alto personagem, fêl-o entrar para o gabinete em que permaneciam as filhas. Convidou-o a sentar-se entre as mais velhas que tiveram o cuidado de offerecer-lhe vinhos generosos, doces dos mais finos, emfim fizeram tudo o que puderam para lhe agradar, e dizendo em segredo, entre si, que nunca tinham contemplado personagem tão perfeito. Comtudo a noiva, coberta de lucto, permanecia sentada defronte d'elle; não erguia os olhos nem dizia palavra. Por fim, o desconhecido - para nós bem conhecido - pedindo ao velho se consentia ser esposo de uma das filhas, as duas mais velhas levantaram se como se mola as impellisse, e foram paramentar-se com os mais ricos vestidos que possuiam, pois qualquer d'ellas estava crente de que era sobre si que incidia a escolha do desconhecido personagem. Ora, este apenas se viu só com a futura, tirou da algibeira metade do annel que conservara preciosamente, metteu-a n'um calice que encheu de vinho generoso, apresentando-o á fiel menina que o acceitou e, depois de o beber, notou no fundo a metade do annel; sentiu pulsar oseu coração; tomou a outra metade que trazia pendente de um collar que lhe envolvia o pescoço, approximou as duas e viu que se ajustavam perfeitamente. Por então o rapaz disse:
- Sou o teu noivo, o noivo que ha tres annos viste coberto com uma pelle d'urso, mas graças a Deus recobrei a minha fórma primitiva.
Ao concluir, apertou-a nos braços, e beijou-a na testa. N'essa occasião, entraram as duas irmans muito tafulas nos seus vestidos, e ao verem que o personagem já estava compromettido com a mais moça, é que se lembraram de que não podia ser outro senão Pelle d'urso, de quem tão pouco haviam feito. Ficaram tão corridas de vergonha e de invejoso ciume que fugiram do gabinete: uma deitou-se a um poço, e a outra enforcou-se na primeira arvore que encontrou.
Á noite bateram á porta; o noivo foi abril-a e reconheceu pelo casaco
verde o diabo que lhe disse:
- Fiquei sem a tua alma, é certo, mas em compensação appareceram-me duas!
No tempo em que Deus andava pelo mundo, estava um pobre lavrador aquecendo-se á lareira emquanto se lastimava á mulher, que perto d'elle fiava, desgostoso por não ser contemplado com filhos.
- Que socego - accrescentou - vae n'esta casa emquanto que em outras então tanto barulho ha causado pela alegria e pelos risos da pequenada!
- Tens razão - appoiou a mulher, suspirando. - Oxalá tivéssemos um só, embora tão pequenino que quasi se não visse. Isso me bastaria para nos alegrar e querer-lhe iamos de todo o coração.
A boa mulher, alguns dias passados, principiou a andar doente, e ao cabo de sete mezes foi mãe d'um menino tão bem formado que se disséra de todo o tempo, mas muito pequenino. Ao vêl-o, a mãe não se conteve que não dissesse:
- É exactamente como nós o haviamos desejado; não deixa, apezar de mais pequeno do que um dedal, de ser o nosso filhinho.
Por via d'isso toda a parentella lhe ficou chamando João-Pequenino. Crearam-n'o tão bem quanto puderam; não cresceu mais, ficando sempre do mesmo tamanho em que nascêra. Era muito vivo, muito esperto; e tinha uns olhitos muito brilhantes; e bem cedo mostrou o tino e actividade sufficientes para levar a bom-effeito qualquer empreza a que se abalançasse.
O camponez, certo dia, apromptava-se para ir cortar madeira á matta visinha e disse para comsigo:
- Bem precisava eu de quem me conduzisse a carroça.
- Pae - gritou João-Pequenino - eu guio a carroça, se quer; não se assuste que chegará a tempo.
O homem desatou a rir:
- Isso éimpossivel! Se és tão pequenino, como has de segurar a redea ao cavallo?
- Isso não faz ao caso, pae! Se a mãe vae atrellar o cavallo, eu